A liberdade de expressão funciona para os dois lados

"Já não há liberdade de expressão!"
"Já não se pode dizer nada!"
"Agora és obrigado a ser politicamente correcto!"


Na Era das fake news, dos trolls e das caixas de comentários que mais parecem campos de batalha, já não sei dizer quantas vezes li estas frases nos últimos anos. Na verdade, o 25 de Abril permitiu-me ler muita coisa que inspirou este post. Entendo que hoje em dia meio mundo se ofende com coisas que não lembram a ninguém e isso é irritante, mas estas afirmações, aliadas ao "lobby gay", à "ideologia de género" e ao "marxismo cultural" são provavelmente das expressões mais utilizadas como desculpa para se evitar uma discussão rica em argumentos e partir para o "eu tenho a minha opinião e tu tens a tua, por isso tens que me deixar em paz".

Mas isso não funciona assim...

Segundo a Constituição Portuguesa:

Artigo 37.º
Liberdade de expressão e informação

1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.

4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.

Temos o direito a ter a nossa própria opinião!

Claro que sim! Basta olhar para os números 1 e 2 do Art. 37.º. E muito mal estávamos se assim não fosse - afinal de contas, foi uma das maravilhas que Abril nos trouxe. Cada um de nós pode avaliar o mundo que nos rodeia de acordo com os nossos próprios valores, as nossas próprias experiências, os nossos próprios gostos. E, claro, cada um de nós tem direito a exprimir-se como quiser de acordo com isso.

Ninguém me pode impedir de dar a minha opinião!

Certíssimo também - Abril, de novo. Esse direito está previsto na Lei - ver o n.º 2 lá em cima! - e, nunca - nunca! - poderá ser censurado.

Mas qual o significado de "impedir"?

Todos sabemos que a censura e a discriminação, em qualquer contexto, com base em opiniões, não é permitida pela Lei - sejam elas opiniões políticas, religiosas, sociais, etc.. Vemos muita gente a afirmar que tem o direito a ter a sua opinião e "ninguém tem nada com isso". Mas olhemos para os números 3 e 4 do Art. 37.º.

Na verdade, há uma diferença entre censurar e contrapor uma opinião. Se dizemos "eu penso que x é mau porque y", estamos sujeitos a que alguém diga "não concordo, x é bom porque z". Isto não é censura. É resposta. É a democracia e a liberdade de expressão a funcionar, é argumentação e discussão de ideias. Se alguém tem o direito de dar a sua opinião, outro alguém pode perfeitamente expressar a sua opinião contrária. E ninguém impede ninguém de se exprimir. Se damos uma opinião e estamos à espera de ter apoio a 100%, e interpretamos uma contrariedade como uma limitação à nossa liberdade, então não temos um conceito correcto de liberdade de expressão e claramente não estamos preparados para uma verdadeira discussão de ideias: estamos apenas a atirar para o ar, e possivelmente sem termos argumentos que fundamentem a nossa opinião.

E as consequências?

Podemos dizer o que quisermos. Felizmente. E, como seres responsáveis pelos nossos próprios actos, temos que lidar com as consequências disso. Se uma marca diz algo de que o público não gosta, arrisca-se a perder clientes - e isso não é censura. Se alguém que eu conheço fizer um discurso homofóbico, provavelmente respondo e passo a evitar a pessoa - e isso não é censura. Se nas redes sociais alguém defender que no Estado Novo "é que era" e tiver mil pessoas a negar o que afirma, isso não é censura. Se uma escola publicar uma fotografia com os alunos a fazer blackface e tiver a opinião pública a criticá-la porque isso é racista, isso não é censura. Se alguém anti-vacinas promover essa linha de pensamento for acusado de pôr a vida de outros em risco, isso não é censura. Se alguém insultar outra pessoa publicamente e essa pessoa a acusar de difamação, isso não é censura (independentemente de o insulto ser merecido ou não). E as consequências não se esgotam por aqui. Difamação, mentira, incentivo ao ódio, entre outros tipos de afirmações que possamos ver englobados na "liberdade de expressão" são infracções previstas na Lei no âmbito das responsabilidades civis e penais.

Ou seja, muitos destes casos configuram até infracções previstas na lei, mas em nenhum dos casos há censura. Não há impedimento nenhum a que se afirme algo. Ninguém vai preso por pensar da forma x ou y. No entanto, todos os nossos actos têm consequências - até o exercício da liberdade de expressão. Tod@s temos o direito de dar a nossa opinião. Tod@s temos o direito de escolher se queremos dar-nos com alguém de acordo com as suas opiniões. Tod@s temos o direito de contrariar alguém se não concordarmos com a sua opinião. Tod@s temos o direito de apresentar argumentos em qualquer situação. Tod@s temos o direito de apresentar queixas por difamação (até o Neto de Moura, vejam lá!), por homofobia, por discurso de ódio, por racismo, por discriminação.

TL;DR?

"Não há liberdade de expressão"? Mentira. Ela existe. Ela está pronta a ser utilizada e até é graças a ela que podemos dizer que ela não existe (ui, o nó!). Mas, se lhe vamos dar uso, estejamos preparad@s para que as outras pessoas exerçam também a sua liberdade de expressão e nos digam que acham que estamos errad@s. Argumentar, discutir ideias, e evitar o "isto é o que eu penso e pronto!" (imaginem isto dito com voz de bebé a fazer birra :p ) trarão sempre discussões mais ricas e que dão sentido ao verdadeiro exercício de liberdade. Ninguém tem o direito de ofender ninguém - e para isso até os tribunais nos defendem - e ninguém vive num pedestal de razão e sapiência infinita. É um equilíbrio complicado mas que devemos entender como fazendo parte dos direitos de todos os cidadãos - dos nossos e dos de quem nos contraria.

Eu sou do tipo de pessoa que já não vai fazer comentários nas redes sociais porque não tenho energia para quem parte para o ad hominem ou para quem parte para a discussão já sem abertura para escutar o outro lado. Mas pessoalmente, como podem imaginar pelo que escrevi, sou o que muitos considerariam uma chata!

Este é um espaço em que me permito dar a minha opinião, na certeza de que haverá desse lado quem discorde e, assim sendo: venha daí essa discussão, o que pensam sobre tudo isto?


1 comentários :

  1. Penso exactamente como tu coração, liberdade de expressão significa também crítica e argumentação, desde que obviamente não ofenda o próximo!

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